Jessé Souza
Recebido para publicação em junho de 1999
Professor de Sociologia da Universidade de Brasília e, atualmente,
professor visitante no Departamento de Psicologia Social da Universidade de Bremen, Alemanha.
Professor de Sociologia da Universidade de Brasília e, atualmente,
professor visitante no Departamento de Psicologia Social da Universidade de Bremen, Alemanha.
O objetivo desse artigo é discutir alguns aspectos da obra de Gilberto Freyre, procurando diferenciar os aspectos mais datados das reflexões que ainda possuem uma surpreendente atualidade. Para isso, toma como ponto de partida o livro de Anthony Marx Making race and nation: a comparison of the United States, South Africa and Brazil. A escolha desse livro se deve a interessante idéia do autor de vincular a questão racial, nesses três casos clássicos de grandes nações constituídas por brancos e negros, ao tema da formação nacional [nation building].
Palavras-chave: Gilberto Freyre, democracia racial, multiculturalismo, cultura brasileira, Anthony Marx.
Gilberto Freyre é considerado tanto no Brasil quanto fora dele um dos clássicos da sociologia brasileira e latino-americana. Nas últimas décadas, no entanto, percebe-se uma tendência crescente para vê-lo como um clássico do passado, em vez de alguém com contribuições para o presente. Para toda uma geração de estudiosos americanos que pensa as relações culturais e raciais a partir de uma perspectiva comparativa, por exemplo, ele não é mais que um ideólogo e mistificador. O propósito deste artigo é discutir alguns aspectos da obra gilbertiana de modo a demonstrar que, ao lado de aspectos indiscutivelmente conservadores e ligados ao debate mais datado de época, algumas de suas intuições e reflexões ainda possuem uma atualidade surpreendente.
Nesse sentido, gostaria de discutir as idéias de um crítico recente, de modo a tornar mais claro os termos do debate. Decidi escolher o livro de Anthony Marx, professor de Ciência Política da Universidade de Columbia, chamado Making race and nation: a comparison of the United States, South Africa and Brazil. A escolha desse livro específico se deve aos seus méritos particulares. Anthony Marx tem uma idéia central interessante e o desenvolvimento de seu argumento é feito com singular coerência a partir de uma bibliografia exaustiva.
O argumento central de Marx vincula a questão racial ao tema da formação nacional (nation building) nesses três casos clássicos de grandes nações constituídas por brancos e negros. Tanto no caso sul-africano quanto no americano o racismo tornado legal contra os negros é explicado pela necessidade, vista pelas elites de então como fundamental, de garantir a união entre setores brancos divergentes. No caso sul-africano, como modo de superar a competição entre ingleses e descendentes de holandeses, rivalidade que já havia levado à guerra boer; no caso americano, para garantir a convivência dos brancos do sul e do norte, que já havia provocado o sangrento conflito da guerra civil1. Para Marx, o caso brasileiro seria uma confirmação ao inverso de sua tese, ou seja, precisamente pela ausência de um conflito fundamental entre elites brancas rivais, teria sido possível evitar uma discriminação legal como nos dois casos anteriores.
A especificidade do caso brasileiro, para Marx, é a construção de uma ideologia insidiosa, a da "democracia racial", fabricada pelas elites brancas, já unidas entre si, de modo a evitar o espírito de revolta dos negros que tantas vezes já havia se mostrado no período colonial. Gilberto Freyre entra precisamente nesse momento do desenvolvimento da argumentação do autor. Gilberto teria sido o criador do conceito de "democracia racial", o qual agiu e ainda age como principal impedimento da possibilidade da construção de uma consciência de raça por parte dos negros (Marx 1987: 167). Gilberto teria construído a contrapartida teórica de uma noção rósea e humanitária do passado escravista brasileiro, abrindo a possibilidade de constituição de uma ideologia social apenas aparentemente inclusiva e extremamente eficiente.
Existe sem dúvida muito de verdade na crítica de Marx. O que fica inexplicado até o fim do livro é por que a ideologia da democracia racial é tão eficiente. É fácil perceber por que os brancos, na África do Sul e nos Estados Unidos, se uniram em uma estratégia de exclusão legal dos negros que lhes rendia dividendos materiais e ideais muito concretos. Mas como explicar o extraordinário poder de uma ideologia inclusiva que não inclui? Gostaria de desenvolver a seguir um aspecto da reflexão gilbertiana, de modo a construir um diálogo com os argumentos avançados por Marx: o que Gilberto considera os aspectos exclusivos e inclusivos do que ele chama de patriarcalismo brasileiro.
Embora seja um engano que não passa despercebido aos seus melhores críticos (Benzaquem 1994: 48-57), a concepção de que Gilberto desenvolveu um quadro róseo, idílico e fantasioso da formação social brasileira é de tal forma generalizada tanto em uma difusa noção popular em relação à sua obra quanto em parte da crítica, no movimento negro ou, mais recentemente, nos trabalhos mais recentes de brasilianistas sobre o tema das relações raciais que vale a pena nos demorarmos nesse ponto.
Esse aspecto é ainda mais surpreendente quando precisamente o contrário parece ter sido o caso, e aqui não se trata apenas de citar os inúmeros casos de crueldade em relação aos escravos que pululam em todo o texto de Casa-grande & senzala. Existe uma razão mais profunda, que tem a ver com o próprio status analítico e com o conteúdo sistemático do argumento gilbertiano. Importa perceber que a categoria estruturante de patriarcalismo em Freyre, com seus atributos de personalismo, familismo e privatismo, possui dois princípios complementares aparentemente contraditórios. Esses dois princípios complementares são os aspectos despótico e segregador, de um lado, e os "democrático" e inclusivo, do outro. A especificidade do patriarcalismo brasileiro, sua longevidade até nossos dias, reside na dialética entre esses dois pólos, desde que o princípio estruturante personalista, familista e privatista seja mantido.
É esse princípio que Gilberto confessa, na introdução à segunda edição de Sobrados e mocambos, ter sido sua intuição guia desde os tempos da mocidade, na esperança de detectar, em uma tradução livre da citação do inglês Lecky, "nos movimentos lentos do passado suas grandes e permanentes forças" (Freyre 1936: XC). No caso brasileiro, sua intuição é de que essas forças são as do familismo, do privatismo, do personalismo; em uma palavra, do patriarcalismo, que "dificilmente desaparecerá de cada um de nós" (idem).
Pode-se considerar, nesse sentido, o excelente ensaio de Roberto DaMatta "Você sabe com quem está falando?" como uma espécie de "fenomenologia do patriarcalismo moderno brasileiro", como uma confirmação empírica de sua permanência silenciosa como idéia-força, mas nem por isso menos eficaz e efetiva, mesmo em um contexto como o atual, no qual o único discurso aceito como válido é o individualista (DaMatta 1981). Vale notar que a própria idéia damattiana de um "dilema brasileiro", a partir do confronto entre dois sistemas de valores rivais, um personalista e outro individualista, reflete uma clara influência gilbertiana. Em Sobrados e mocambos, encontramos a reconstituição da gênese mesma desse processo no embate entre patriarcalismo, herança colonial brasileira e base do personalismo, por um lado, e reeuropeização, com a introdução dos novos valores da modernidade, no sentido burguês e individualista desse último termo, por outro.
O fim do primeiro capítulo de Casa-grande & senzala fornece uma interessante chave explicativa sociopsicológica do princípio segregador do patriarcalismo. Esse capítulo é um esforço de síntese que abrange o período de formação e consolidação do patriarcalismo familiar brasileiro que constitui o período histórico analisado no livro. De certa forma, Gilberto retira todas as conseqüências do fato de que, dada a distância do Estado português e de suas instituições, a família é a unidade básica da formação brasileira, e interpreta o drama social da época sob a égide de um conceito psicanalítico: o sadomasoquismo.2 Temos aqui um conceito limite de sociedade, no qual a ausência de instituições intermediárias faz com que o elemento familístico seja seu componente principal. Daí que o drama específico dessa forma societária possa ser descrito a partir de categorias sociopsicológicas, cuja gênese aponta para as relações sociais ditas primárias.
É precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sadomasoquista, no sentido de uma patologia social específica em que a dor alheia, a perversão do prazer, transforma-se em objetivo máximo das relações interpessoais, que Gilberto interpreta a semente essencial da formação brasileira. De forma distinta daquela com que os teóricos da primeira fase da Escola de Frankfurt (Fromm 1987), na mesma década de 1930, procuravam, com a ajuda do mesmo conceito, explicar o nazismo partindo de um quadro categorial que pressupunha uma rígida estrutura hierárquica preexistente, em que a obediência acrítica em relação aos estratos superiores possuía uma conexão estrutural com o despotismo em relação aos grupos mais passíveis de estigmatização, Gilberto, ao contrário, enfatiza o elemento personalista.
Patriarcalismo, para ele, tem a ver com o fato de que não existem limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos. Não existe justiça superior a ele, como em Portugal era o caso da justiça da Igreja, que decidia em última instância querelas seculares, não existia também poder policial independente que lhe pudesse exigir cumprimentos de contrato, como no caso das dívidas impagáveis de que fala Gilberto, não existia, last but not least, poder moral independente, posto que a capela era uma mera extensão da casa-grande.
Sem dúvida, a sociedade cultural e racialmente híbrida de que nos fala Gilberto não significa de modo algum igualdade entre as culturas e raças. Houve domínio e subordinação sistemática, melhor, ou pior, no caso, houve perversão do domínio no conceito limite do sadismo. Nada mais longe de um conceito idílico ou róseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem português com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres brancas, as bonecas para reprodução e sexo unilateral de que nos fala Gilberto (Freyre 1933: 60, 326, 332). Era sádica, finalmente, a relação do senhor com os próprios filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos (Freyre 1936: 68 e 71).
O senhor de terras e escravos era o hiper-indivíduo, não o super-homem futurista nietzscheano que obedece aos valores que ele próprio cria, mas o super-homem do passado, o bárbaro sem qualquer noção internalizada de limites em relação aos seus impulsos primários.
Esse ponto não me parece um aspecto isolado e pitoresco da reflexão gilbertiana. Ao contrário, ele dá conta da dinâmica de um dos dois princípios estruturantes que dão compreensibilidade ao seu conceito de patriarcalismo e, portanto, à toda a empresa gilbertiana. Afinal, é o sadismo transformado em mandonismo, que sai da esfera privada e invade a esfera pública, inaugurando uma dialética profundamente brasileira de lidar com as noções de público e de privado.
A conseqüência política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem da esfera da família e da atividade sexual para a esfera pública das relações políticas e sociais, se torna evidente na dialética de mandonismo e autoritarismo, de um lado, no lado das elites, mais precisamente, e no populismo e messianismo das massas, do outro. Dialética essa que assume formas múltiplas e mais concretas nas oposições entre doutores e analfabetos, grupos e classes mais europeizadas e massas ameríndia e africana e assim por diante.
A explicação sociológica para a origem desse "pecado original" da formação social brasileira exige, para Gilberto, a consideração da necessidade objetiva de um país pequeno como Portugal solucionar o problema de como colonizar terras gigantescas: pela delegação da tarefa a particulares, antes estimulando que coibindo o privatismo e a ânsia de posse. Para Gilberto, é de fundamental importância para a compreensão da singularidade cultural brasileira a influência continuada e marcante dessa semente original.
A decadência do patriarcado rural brasileiro está diretamente ligada à ascendência da cultura citadina no Brasil. Esse processo, que a vinda da família real portuguesa ao Brasil veio consolidar, estava prenunciado na descoberta das minas, na presença de algumas cidades coloniais de expressão, na necessidade de maior vigilância sobre a riqueza recém-descoberta e no maior controle, a partir de então, sobre o mandonismo privado. Exemplo típico e sintomático da mudança do poder do campo para as cidades é o caso das dívidas dos patriarcas rurais, antes incobráveis, e a partir de então pagas sob força policial. Tão importante quanto a mudança do centro economicamente dinâmico foi a transformação social de largas proporções, implicando novos hábitos, novos papéis sociais, novas profissões e nova hierarquia social.
Fundamental para a constituição desse quadro de renovação é que as mudanças políticas, consubstanciadas na nova forma do Estado, e as mudanças econômicas, materializadas na introdução da máquina e na constituição de um incipiente mercado capitalista, foram acompanhadas também de importantes mudanças ideológicas e morais. Com a maior urbanização, a hierarquia social passa a ser marcada pela oposição entre valores europeus burgueses e os valores anti-europeus do interior, marcando no país uma antinomia valorativa cujas repercussões nos atingem ainda hoje. A opressão tende a ser exercida agora cada vez menos por senhores contra escravos, e cada vez mais por portadores de valores europeus – sejam esses efetivamente assimilados ou simplesmente imitados – contra pobres, africanos e índios.
A época de transição do poder político, econômico e cultural do campo para a cidade foi também, em vários sentidos, a época do campo na cidade. De início, o privatismo e o personalismo rural foram transpostos para a cidade tal qual eram exercidos no campo. A metáfora da casa e da rua em Gilberto assim o atesta. O sobrado, a casa do senhor rural na cidade, é uma espécie de prolongamento material da personalidade do senhor. Sua relação com a rua, essa espécie arquetípica e primitiva de espaço público, é de desprezo, a rua é o lixo da casa, representa o perigo, o escuro, era simplesmente a não-casa, uma ausência. O sadomasoquismo social muda de habitação. Seu conteúdo, no entanto, aquilo que o determina como conceito para Gilberto Freyre, ou seja, o seu visceral não-reconhecimento da alteridade, permanece.
A passagem do sistema casa-grande e senzala para o sistema sobrado e mocambo fragmenta, estilhaça em mil pedaços uma unidade antes orgânica, antagonismos em equilíbrio, como prefere Gilberto. Esses fragmentos se espalham agora por toda a parte, completando-se mal e acentuando conflitos e oposições. Da casa-grande e senzala, depois sobrados e mocambos, e talvez hoje em dia bairros burgueses e favelas, as acomodações e complementaridades ficam cada vez mais raras. De início, a cidade não representou mais que o prolongamento da desbragada incúria dos interesses públicos em favor dos particulares. O abastecimento de víveres, por exemplo, foi um problema especialmente delicado, sendo permitido, inclusive, o controle abusivo dos proprietários até sobre as praias e sobre os viveiros de peixes que nelas se encontravam, sendo estes vendidos depois a preços oligopolísticos (Freyre 1936: 171).
Desse modo, a urbanização representou uma piora nas condições de vida dos negros livres e de muitos mestiços pobres das cidades. O nível de vida baixou, a comida ficou pior e a casa também. Seu abandono os fez então perigosos, criminosos, "capoeiras" etc. Os sobrados senhoris, também nenhuma obra-prima em termos de condições de moradia, por serem escuras e anti-higiênicas, tornaram-se com o tempo prisões defensivas do perigo da rua, dos moleques, dos capoeiras etc.
No entanto, a urbanização também representou uma mudança lenta mas fundamental na forma do exercício do poder patriarcal: ele deixou de ser familiar e abstraiu-se da figura do patriarca, passando a assumir formas impessoais. Uma dessas formas impessoais foi a estatal, que passou, por meio da figura do imperador, a representar uma espécie de pai de todos, especialmente dos mais ricos e enriquecidos na cidade, como os comerciantes e financistas. O Estado, ao mesmo tempo, minou o poder pessoal pelo alto, penetrando na própria casa do senhor, roubando-lhe os filhos e os transformando em seus rivais. É que as novas necessidades estatais por burocratas, juizes, fiscais, juristas etc., todas indispensáveis para as novas funções do Estado, podiam ser mais bem exercidas pelo conhecimento que os jovens adquiriam na escola, especialmente se ela fosse européia, o que lhes conferia ainda mais prestígio.
Com isso, o velho conhecimento baseado na experiência, típico das gerações mais velhas, foi rapidamente desvalorizado, em um processo que, por seu exagero, é típico de épocas de transição como aquela. D. Pedro II é uma figura emblemática nesse processo. Sendo ele próprio um imperador jovem, cercou-se de seus iguais, ajudando a criar o que Nabuco chamaria de "neocracia" (Freyre 1936: 88).
Também a relação entre os sexos mudou. A urbanização mitiga o excesso de arbítrio do patriarca ao retirar as pré-condições sob a influência das quais ele exercia seu poder ilimitado. O médico de família, por exemplo, insere no lar doméstico uma influência incontrolável pelo patriarca. É ele que irá substituir o confessor. O teatro, o baile de máscaras, as novas modas de vestir e os romances se tornam mais importantes que a Igreja. Um novo mundo se abre para as mulheres, apesar do sexismo ter sido, para Gilberto, nosso preconceito mais persistente.
De qualquer modo, as mudanças acima representam transformações importantes porém limitadas da autoridade patriarcal. Ele é obrigado a limitar-se à sua própria casa, mas a real mudança estrutural e "democrática" ainda estava por vir. Em Sobrados e mocambos, essa mudança recebe o nome de reeuropeização, ou até, dado o caráter difusamente oriental da sociedade colonial brasileira, de europeização do Brasil.
Impacto verdadeiramente democratizante parece ter sido o advento mais ou menos simultâneo do "mercado" e da constituição de um "aparelho estatal autônomo", com todas as suas conseqüências sociais e culturais. A reeuropeização teve um caráter de reconquista, no sentido da revalorização de elementos ocidentais e individualistas em nossa cultura através da influência de uma Europa, agora já francamente burguesa, nos exemplos da França, Alemanha, Itália e, especialmente, da grande potência imperial e industrial da época e terra natal do individualismo protestante, a Inglaterra.
Tal processo se realizou como uma grande revolução de cima para baixo, envolvendo todos os estratos sociais, mudando a posição e o prestígio relativo de cada um desses grupos e acrescentando novos elementos de diferenciação. São esses novos valores burgueses e individualistas que irão se tornar o núcleo da idéia de "modernidade" como princípio ideologicamente hegemônico da sociedade brasileira a partir de então. No estilo de vida, e aí Gilberto chama atenção para a influência decisiva dos interesses comerciais e industriais do imperialismo inglês, mudou-se hábitos, a arquitetura das casas, o jeito de vestir, as cores da moda, algumas vezes com o exagero do uso de tecidos grossos e impróprios ao clima tropical. Bebia-se agora cerveja e comia-se pão como um inglês, e tudo que era português ou oriental se transformou em sinal de mau gosto (Freyre 1936: 336). O caráter absoluto dessas novas distinções tornou o brasileiro de então presa fácil da esperteza, especialmente francesa no relato de Gilberto, de comprar gato por lebre.
Para além das mudanças econômicas, houve as culturais e políticas, com o advento das novas idéias liberais e individualistas, que logo conquistaram setores da imprensa e as tribunas parlamentares, criando o contexto da interpretação machadiana de Roberto Schwartz acerca das idéias fora de lugar, no caso, idéias liberais em uma sociedade ainda escravocrata. A teoria das "idéias fora do lugar" guarda sua plausibilidade, certamente, apenas em um registro sincrônico. A partir de uma ótica diacrônica, percebemos que essas idéias seriam melhor designadas como "à procura de um lugar", o qual, aliás, logo encontraram, sendo o individualismo, e por conseqüência o liberalismo, um componente constitutivo da realidade brasileira desde então.
No entanto, nenhuma dessas mudanças importantes teve o impacto da entrada em cena no nosso país do elemento burguês democratizante por excelência: o conhecimento e, com ele, a valorização do talento individual, que tanto o novo mercado para artífices especializados quanto as novas funções estatais exigiam. No âmbito do mercado, fundamental foi a introdução da máquina, a qual, como de resto sabia Karl Marx, não é mais que conhecimento materializado. Gilberto está perfeitamente consciente da enorme repercussão social dessa inovação técnica (Freyre 1936: 489-508). É que a máquina veio desvalorizar a base mesma da sociedade patriarcal, diminuindo tanto a importância relativa do senhor quanto do escravo, agindo como principal elemento dissolvente da sociedade e cultura patriarcais.
Ao desvalorizar as duas posições sociais polares que marcam a sociedade escravocrata, ela vinha valorizar, por conta disso, precisamente aquele elemento médio, que sempre havia composto uma espécie de estrato intermediário na antiga sociedade, na qual, não sendo nem senhor nem exatamente um escravo, era um "deslocado", um sem-lugar portanto.
Apesar do elemento democrático ter sido "atualizado" e possibilitado pelos novos valores advindos do processo de reeuropização, ou seja, de "fora para dentro", sua assimilação só é possível de forma rápida e eficaz, porque o próprio sistema já havia gestado, desde sempre, um elemento democrático ao lado do despótico e segregador, cujas origens estão também nas formas de convivência do patriarcalismo, que é precisamente aquilo que Gilberto chamará um tanto vagamente de seu elemento democrático.
A gênese social desse elemento remonta a "intimidade sexual e cultural" entre as diversas raças e culturas, especialmente a portuguesa e a africana, que predominava no sistema casa-grande e senzala. O enorme número de mestiços e filhos ilegítimos de senhores e padres, indivíduos de status intermediários, quase sempre assumindo as funções de escravo doméstico ou agregado da família, de qualquer modo quase sempre mais ou menos deslocado no mundo de posições polares como são as de senhor e escravo. A enorme mudança social implicada pela mudança do campo para a cidade abre, no entanto, oportunidades antes imprevistas para esse estrato.
Na nova sociedade nascente são as antigas posições polares que perdem peso relativo, e esses indivíduos, quase sempre mestiços, sem outra fonte de riqueza que não sua habilidade e disposição de aprender os novos ofícios mecânicos, quase sempre como aprendizes de mestres e artesãos europeus, passaram a formar o elemento mais tipicamente burguês daquela sociedade em mudança: o elemento médio, sob a forma de uma meia-raça.
Ao invés apenas dos apanágios exteriores de raça, dentro da complexa ritualística que, como conseqüência da maior proximidade social entre os diversos estratos sociais que a urbanização enseja, instaura-se no país nessa época, como a forma da vestimenta, a comida, o modo de transporte, o jeito de andar, o tipo de sapato etc, temos um elemento diferenciador novo. Esse elemento é revolucionário no melhor sentido burguês do termo, posto que "interno" e não externo, sendo antes uma substância e um conteúdo que uma aparência, mais ligados portanto a qualidades e talentos pessoais que a privilégios herdados.
O conhecimento, a perícia, passa a ser o novo elemento que passa a contar de forma crescente na definição da nova hierarquia social. Nesse sentido, servindo de base para a introdução de um elemento democratizante, pondo de ponta-cabeça e redefinido revolucionariamente a questão do status inicial para as oportunidades de mobilidade social na nova sociedade. Uma democratização que tinha como suporte o mulato habilidoso. Do lado do mercado, essas transformações se operam segundo uma lógica de "baixo para cima", ou seja, pela ascensão social de elementos novos em funções manuais, as quais, sendo o interdito social absoluto em todas as sociedades escravocratas, não eram percebidas pelos brancos como dignificantes. Com o enriquecimento paulatino, no entanto, de mulatos aprendizes e artífices e de imigrantes, nessa época especialmente portugueses, como caixeiros e comerciantes, as rivalidades e preconceitos tenderam a aumentar proporcionalmente.
O outro caminho de ascensão social do mulato, do mulato bacharel para Gilberto, de cultura superior e portanto mais aristocrático que o mulato artesão, é o símbolo de uma modernização que se operou não apenas de "fora para dentro" e de "baixo para cima", mas também de "cima para baixo". O mestiço bacharel constitui uma nobreza associada às funções do Estado e de um tipo de cultura mais retórico e humanista que a cultura mais técnica e pragmática do mestiço artesão. O Estado, portanto, e não apenas o mercado como semente de uma incipiente sociedade civil, foi também um locus importante dessa nova modernidade híbrida, já burguesa, mas ainda patriarcal, se bem que de um patriarcalismo já sublimado e mais abstrato e impessoal na figura do imperador pai de todos, e já mais afastado portanto do patriarcalismo familístico todo-dominante na colônia.
O processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro. Tanto o escravo quanto o pária dos mocambos nas cidades era o elemento em relação ao qual todos queriam se distinguir. A enorme importância da vestimenta nessa época servia agora para fins de diferenciação social, que antes sequer necessitavam de externalização. O elemento capaz de ascensão, portanto, era o mulato ou o mestiço em geral, o semi-integrado, o agregado e todas as figuras intermediárias da sociedade. A própria ênfase na distinção do traje ou a violência das humilhações públicas contra os mestiços que usavam casaca ou luva já demonstram, como uma conseqüência mesma do acirramento das contradições a partir da competição com indivíduos brancos antes seguros de sua posição (Freyre 1936: 399), a possibilidade real de ascensão e a contradição entre elementos constitutivos do sistema: um segregador e outro democratizante.
Fundamental para a compreensão do argumento de Gilberto, no entanto, vale a pena repetir, é que o componente externo, burguês, da revalorização do trabalho manual e da habilidade pessoal, produto do processo de reeuropeização é apenas parte do processo de constituição de uma sociedade mestiça e híbrida. Tão importante quanto a entrada desse novo elemento é o fato de que a tendência segregacionista do sistema teve desde sempre a competição de um elemento de tolerância, de acomodação e compromisso como um traço constitutivo complementar, também ele intrínseco ao sistema valorativo do patriarcalismo. Sendo portanto duas tendências, uma segregadora e despótica e outra "democrática", dentro do mesmo sistema, em complexa relação de complementaridade e oposição.
As chances de ascensão social do mestiço já estavam assim prefiguradas pelo costume de dividir as heranças entre filhos ilegítimos, ou seja, mestiços de alguns senhores, problema que deve ter atingido proporções razoáveis para estimular escritos e reclamações contrárias à prática por ser supostamente fragmentadora da riqueza acumulada, como nos conta Gilberto em Casa-grande e senzala. Também pela proximidade e intimidade afetiva, e não apenas sadomasoquismo, entre o senhor e suas concubinas, assim como pelos sentimentos filiais entre filhos de senhores e amas negras, em resumo, por todas as formas de extensão em linha vertical de vínculos afetivos e privilégios familiares e de classe a agregados, no sentido amplo do termo, da família patriarcal.
Para a crítica, sempre foi um anátema chamar-se democrática uma relação que se refere a privilégios concedidos em linha vertical, o que envolve claramente a noção de hierarquia e de desigualdade. Duas considerações merecem ser desenvolvidas aqui. Primeiro, Gilberto está falando de uma sociedade escravocrata, ou seja, a relação social mais desigual e violenta possível. O seu ponto de vista hermenêutico implica perceber a sociedade patriarcal nos seus próprios termos, o que certamente lhe proporciona a extraordinária vantagem de examinar o patriarcalismo brasileiro sem a refração, não só de conceitos etnocêntricos, mas também do julgamento ex post, que envolve a distorção de perceber situações históricas segundo critérios de valor surgidos séculos mais tarde.
Interessava a ele perceber contradições dentro de uma sistema cuja regra era a violência e o mando. Relações que apontassem para um afrouxamento do princípio inerentemente exclusivo da escravidão. Democrático aqui, portanto, assume o sentido sóbrio de um conceito derivado, que apenas ganha sentido pela oposição ao caráter despótico da escravidão. Real função revolucionária e renovadora pôde ter esse princípio apenas em conjunção com o advento de elementos estranhos ao sistema original que possibilita seu desenvolvimento para além dos limites anteriores. E é apenas em ação conjunta com os novos impulsos individualizantes do mercado e da constituição de um aparelho de Estado que permitem a realização de elementos apenas gestados no sistema anterior e que haviam permanecido como que em estado de estufa na fase rural do patriarcalismo brasileiro.
O inverso, no entanto, também é verdadeiro. As influências individualizantes e burguesas só são rapidamente assimiladas e lograram encontrar acomodação na nova fase do patriarcalismo urbano apenas porque essas potencialidades integradoras e não excludentes já existiam em potência no sistema anterior. Prova disso é o fato de que os lugares sociais do patriarcalismo sempre foram, para Gilberto, funcionais, e não essencialistas. Isso permite que a figura masculina do patriarca possa ser exercida por uma mulher, a qual obviamente continua biologicamente mulher, mas é sociologicamente ou funcionalmente homem/patriarca. Assim, do mesmo modo, os afilhados ou sobrinhos, como eram chamados os filhos ilegítimos de senhores de terra e padres, os quais poderiam se tornar sociologicamente filhos, herdando a riqueza paterna, ou mesmo o substituindo na atividade produtiva.
O mesmo traço sistêmico fazia o biologicamente mulato se transformar em sociologicamente branco, ou seja, ocupar posições sociais que, em um sistema escravocrata, são privilégio de brancos (Freyre 1936: 366). Com isso Gilberto está evidentemente dizendo não que o sistema não era injusto ou despótico, mas apenas que ele era sociologicamente flexível e não rígido, desde que o princípio estruturante, personalista, privatista e familístico fosse mantido. Isso explica, talvez, sua extraordinária sobrevivência, sob outros disfarces, até nossos dias.
Em segundo lugar, no entanto, acho que Gilberto está efetivamente convencido de que a reeuropeização implica também ambigüidades antidemocráticas em um sentido bastante preciso, representando, nesse aspecto particular, antes um atraso que um progresso digno de ser assimilado. É que a relativa flexibilidade sociológica do sistema que quebrava a rigidez das contraposições entre senhor e escravo implicava também a possibilidade de absorção de tradições culturais diversas daquela do elemento dominante.
Com a reeuropeização do Brasil, o primado cultural não despótico do português, que não só admitia como até estimulava compromissos e acomodações com as tradições culturais dominadas, foi substituído pela dominação do absolutamente superior pelo absolutamente inferior. As leis citadinas da primeira metade do séc. XIX documentam incontável número de sanções, algumas absurdas, contra valores não-europeus ou rurais. Comportamentos, como diziam os jornais da época, "que nos fariam parecer selvagens aos olhos dos europeus", o nosso ubíquo "panopticum", todo vigilante e cioso, desde então (Freyre 1936: 426, 433, 462, 464). A estigmatização de valores portugueses, mouros, judeus e negros, que no fim do séc. XVIII já eram "brasileiros", seria uma conseqüência dessa nova e rígida hierarquia valorativa. Para além da estigmatização, Gilberto pensa na criminalização de ritos e festas africanas como a capoeira, por exemplo, que foi proibida pela polícia, ajudando sua transformação, na época, de jogo e dança em arma de vingança e revolta.
Muito do "tropicalismo" gilbertiano tem a ver com essa noção de pluralidade cultural que ele tanto admirava na colonização portuguesa tanto aqui como na Ásia. Sua idéia básica nesse particular vincula tanto preocupações universalistas quanto culturalistas. Do universalismo lhe interessa manter a abertura a novas orientações e valores, uma permanente flexibilidade e abertura ao estranho. Do culturalismo ele pretendia retirar um princípio hierarquizador que, ao mesmo tempo que possibilitasse a expressão do múltiplo, permitisse um lugar no qual a reflexão do que merecesse assimilação pudesse ser diferenciado do mero modismo ou da mera necessidade arrivista daqueles ansiosos por ascensão social, e portanto por critérios de diferenciação de status sem relação com verdadeiro e sóbrio aprendizado cultural. Sua preocupação "ecológica" tem a ver com a continuação de uma tradição luso-brasileira de contato intercultural que, a seus olhos, nada tinha a ver com atraso ou com o particularismo míope.
Se voltarmos nessa altura a reexaminar o argumento de Anthony Marx e sua crítica a Gilberto, podemos perceber alguns pontos interessantes. Primeiro, podemos afastar a crítica de um quadro róseo do período colonial brasileiro e de uma "escravidão humanitária", sem dúvida uma contradição em termos. Depois, e mais importante, podemos procurar tentar responder a questão sem resposta para Marx: afinal, de onde vem a tremenda eficácia da ideologia da democracia social? Por que as pessoas no Brasil, e entre elas especialmente os negros, acreditam nela?
Anthony Marx parte, como vimos, de um argumento funcional e institucional para avaliar comparativamente os diversos resultados da forma que a discriminação racial assume: são as necessidades de garantir solidariedade e estabilidade interna indispensáveis para a construção do Estado nacional de tipo moderno. Ele examina as tradições culturais e históricas distintas apenas para concluir pela ausência de seu peso heurístico específico (Marx 1987: 78). No entanto, talvez fosse interessante nos demorarmos um pouco mais nesse aspecto.
Não acho que a questão essencial para Gilberto nesse particular seja o tema da maior ou menor "humanidade" no tratamento dos escravos, como supõe Marx. Nesse particular, inclusive, Gilberto, ao contrário de Frank Tannembaum no seu livro clássico (Tannembaum 1991) não enfatiza a distinção fundamental entre a escravidão no Brasil e àquela do sul dos Estados Unidos.3 No entanto, existe um outro legado histórico, para o qual o próprio Marx chama a atenção no decorrer de seu texto, sem conferir a atenção que o assunto mereceria. Trata-se da relação diversa dos Estados Unidos e do Brasil com a questão da modernidade.
Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos são um dos países que nasceram e retiraram sua razão de ser a partir de idéias que vieram a ser conhecidas mais tarde como constitutivas para o ideário ocidental. No caso americano, especialmente as noções de liberdade religiosa, depois expandidas para as esferas da política e da economia, e a noção, de fundo sectário protestante, da responsabilidade individual. Ao contrário de outras matrizes do ideário ocidental como a Inglaterra, a França e a Alemanha, nos Estados Unidos a consciência de que se estava realizando uma experiência societária original e única foi absolutamente singular. Já o discurso de John Winthrop, o seu city upon a hill, tendo como público os primeiros pioneiros, aponta para um grau de internalização reflexiva do projeto de sociedade que ali nascia que não deve ter comparação na história. É essa tradição que Robert Bellah chamou de "religião cívica" americana, para se referir à constante reinterpretação do ato fundador da comunidade política como uma missão a ser cumprida coletivamente.
É o próprio Marx que escreve: "Já em Gettysburg, Edward Everett havia se referido à necessidade de reconciliação entre nortistas e sulistas os quais dividem uma comunidade substancial de origem. Os negros eram claramente concebidos como não fazendo parte dessa unidade ancestral" (Marx 1997: 134). O ponto de convergência fundamental entre ingleses e descendentes de holandeses na África do Sul, na sua aliança contra os negros, teve também em uma ancestral "comunidade cultural e de valores" seu cimento primeiro. O caso brasileiro apresenta um desvio importante dessa lógica. A "modernidade" chega ao país de navio, como vimos, e põe de ponta-cabeça seja em seu aspecto material, seja em seu aspecto simbólico, toda a sociedade vigente. Com relação a esses novos valores que chegam, não havia diferença de fundo entre brancos, mestiços ou negros. Esses valores são estranhos a todos igualmente e põem, portanto, a questão do status relativo sob novos padrões, como havia percebido Freyre.
Foi nas necessidades abertas por um mercado incipiente, em funções manuais e mecânicas rejeitadas pelos brancos, assim como pelas necessidades de um aparelho estatal em desenvolvimento, que mestiços puderam afirmar seu lugar social. Nesse último caso, por se tratar de colocações de alta competitividade, disputando posições com os brancos, é que Gilberto fala da "cordialidade" e do sorriso fácil, típico do mulato em ascensão, como a "compensar" o dado negativo da cor. Essa "compensação", ao mesmo tempo que reafirma o racismo, mostra que o empecilho não era absoluto e sim relativo, superável pelo talento individual, ou seja, mostra que havia espaço para formas de reconhecimento social baseadas no desempenho diferencial e não apenas em categorias adscritivas de cor.
Afinal, fazia parte mesmo da flexibilidade do sistema o abandono de características segregadoras a partir da dimensão biológica, tão determinante em outros sistemas com características semelhantes, em favor de uma sobredeterminação sociológica ou funcional. De certo modo, o que era construtivo e funcional para a reprodução do sistema como um todo, governado já agora pela palavra mágica da modernização, era passível de valorização. Assim, a realização diferencial de certos fins e valores considerados de utilidade social inquestionável era mais importante, por exemplo, que a cor da pele do indivíduo em questão.
O esforço de assimilação de valores e da tecnologia ocidental por brasileiros é precisamente o ponto em que diferenças de raça e classe sempre foram e são até hoje relativizadas (Costas s/d: 5). É o aspecto no qual o ideário de ordem e progresso encontra seu alfa e ômega. Quem quer que contribua para esse desiderato maior de modernização é premiado pelo sistema. Em todos os estratos tradicionais da sociedade patriarcal brasileira, nenhum tinha relação privilegiada com a modernidade. Eram valores estranhos a todos, os quais foram assimilados ou imitados avidamente por um país que antes da europeização mais lembrava um país asiático que americano ocidental.
Esse aspecto é fundamental para que compreendamos por que a noção de democracia racial era e é eficaz. Do começo ao fim do século XIX a proporção de mulatos cresceu de 10% para 41% da população total. Isso implica rápida miscigenação e casamentos inter-raciais e indica que a mobilidade social desse estrato era mais que mera fantasia. A partir da segunda metade do séc. XIX, a ascensão social de mestiços no Brasil fez, efetivamente, com que tivéssemos mulatos como figuras de proa na literatura, na política, no exército, e atuantes como ministros, embaixadores e até presidentes da república. Seria certamente uma hipótese interessante estudar que tipo de modificações nesse processo foi causado pela entrada em número significativo, estima-se entre cinco e sete milhões de pessoas, de europeus a partir do fim do século XIX. A chegada dos portadores mesmos – reais ou fictícios – dos valores da modernidade deve ter certamente contribuído para uma modificação decisiva nesse padrão.
Não é que essas questões históricas e culturais, as únicas possíveis de explicar a seletividade de processos históricos contingentes, não sejam tratadas por Marx. O fato é que, apesar de discutir essas questões, elas não adquirem em seu esquema nenhum espaço explicativo ou causal. Assim, os laços de solidariedade cultural e moral que unia os setores brancos nos EUA e na África do Sul são subordinados, no seu esquema explicativo, em favor da escolha instrumental da estabilidade política pelo nascente Estado-nação. Uma combinação das duas perspectivas teria talvez contribuído para conferir uma ainda maior abrangência e poder de convencimento ao seu argumento, de resto desenvolvido com maestria.
Do mesmo modo, o "mito" da democracia racial, desprovido das condições culturais e históricas que lhe deram realidade, torna-se simples maldade ou esperteza das elites brancas, complementada pela tolice dos negros e mestiços que acreditaram e acreditam nela.
Contudo, o ponto de partida gilbertiano apresenta dificuldades de outra ordem. Gilberto é o pensador por excelência da hierarquia, das partes que se combinam sem antagonismo. Seu "holismo" o impede de perceber, em toda a sua inteireza, a perspectiva das partes, por exemplo dos grupos e classes oprimidos pelo sistema como um todo.4 É interessante perceber que essa deficiência é a contrapartida, por assim dizer, de uma vantagem: uma tentativa de abordagem hermenêutica da realidade brasileira.
Para Gilberto Freyre a questão era evitar a armadilha de refletir acerca da formação social brasileira a partir de um ponto de vista que poderíamos chamar de perspectiva da terceira pessoa, imposto de fora para dentro, produzido pelo discurso "civilizador" europeu, que assumiu nessa fase a forma do discurso da superioridade racial acerca de suas colônias. Não que o caso fosse de construção de um contradiscurso no sentido banal de anti-imperialismo. Creio que não escapava a Gilberto a armadilha desse tipo de discurso, o qual, ao fim e ao cabo, apenas inverte os termos da questão de forma especular, conservando do outro todos os defeitos: o conteúdo emotivo e irrefletido, o vínculo arrogância–ressentimento, o fechamento da perspectiva reflexiva e de aprendizado mútuo.
Um antidiscurso que não envolvesse a banalização anti-imperialista exigia, antes de tudo, a consideração da formação social brasileira segundo seus próprios termos, a partir da perspectiva da primeira pessoa, precisamente o que tentamos nomear aqui como uma perspectiva hermenêutica. Nesse sentido, Gilberto procurou estudar a especificidade brasileira sem apelar para conceitos derivados como patrimonialismo, homem cordial, capitalismo dependente ou cidadania regulada. Em cada um desses conceitos convive, muitas vezes sem que isso seja explicitado, seu contrário. Sem nenhum demérito para os propositores dessas categorias explicativas, os quais sem dúvida contribuíram de forma importante para o esclarecimento de aspectos essenciais de nossa realidade, o caráter derivativo desses conceitos tende a enfatizar seu caráter negativo, de ausência e, especialmente, de desvio ou refração em relação a um modelo tido, implícita ou explicitamente, como exemplar. A reflexão teórica construída a partir desses modelos já está saturada, quase sempre imperceptivelmente, de uma série de pressupostos, de toda uma carga normativa, que funcionam, muitas vezes, como interditos, e não apenas como aberturas à reflexão.
A estratégia conceitual que possibilitou a Gilberto Freyre realizar tamanha revolução na contramão das tendências dominantes tanto de sua época como de hoje parece ter sido sua preocupação em ir do mais particular ao mais geral, como já havia aliás notado Álvaro Lins (1980), um de seus primeiros comentadores. Gilberto parte do dia-a-dia, do vestuário, da arquitetura das casas, da decoração interior, dos hábitos de alcova e da intimidade erótica, das comidas, dos gostos mais ou menos acres dos quitutes e dos doces, das formas de cumprimentar, das modificações da linguagem que denotam mudanças na sociabilidade etc. Assim, seus conceitos mais gerais, como o de patriarcalismo, não são construídos de acordo com um modelo implícita ou explicitamente já existente. Sua ciência nasce de "baixo para cima", atentando para perceber o sentido, a direção, a tendência daquele componente social apenas parcialmente acessível à consciência, a obsessão de articular o que ainda não tem nome.
Isso significa para os seus fins um ganho extraordinário. O modelo para o Brasil não é mais apenas a Europa, mas também o próprio Brasil ou, pelo menos, potencialidades que são brasileiras em um sentido profundo. A Europa, aliás, a Europa burguesa e industrial, é um invasor tardio e chega de navio com a abertura dos portos e a chegada da Família Real em 1808. A semente societária brasileira, portanto, já tinha quase três séculos de desenvolvimento e consolidação. Semente essa, a sociedade patriarcal, cujo "conteúdo" era mouro e africano, ou seja, oriental, no sentido vago que Gilberto empresta ao termo para se referir a tudo que não seja ocidental.
O próprio português, o elemento que contribui para a "forma" da sociedade patriarcal, é ele próprio muito pouco europeu. A estratégia argumentativa de Gilberto em Casa-grande e senzala é separar a Ibéria da cultura européia mais geral, seja a resultante da reforma, seja da revolução francesa, seja ainda da renascença italiana. E, dentro do próprio mundo hispânico, separar o "anguloso" castelhano do Português. A especificidade do português para Gilberto é não ter especificidade alguma. Ele é o contemporizador por excelência, e é isso que o diferencia dos colonizadores espanhol e inglês na América: "nem ideais absolutos, nem preconceitos inflexíveis", na bela fórmula gilbertiana. A ontologia do português é ser mediador, curvar-se às circunstâncias, entrar em relação com as culturas dominadas. Sua fraqueza é sua força, como diz Sérgio Buarque (Buarque 1978: 79).
O ganho desse tipo de perspectiva é precisamente o fato de ter possibilitado interpretar a formação social brasileira como uma experiência ambígua, com aspectos positivos e negativos. E nesse desiderato ele é, ainda hoje, um quase solitário. Porque a superação entre nós do paradigma racista pelo cultural nas primeiras décadas do século XX, processo do qual ele próprio foi um dos pioneiros, se, por um lado, efetivamente elevou a reflexão nacional ao standard científico dominante internacionalmente nessa época, por outro, manteve o mesmo pressuposto de uma absoluta positividade, agora cultural e institucional e não mais racial, da qual a experiência brasileira seria apenas um desvio.
Na ciência como na vida, no entanto, toda realização tem seu preço. Talvez um dos preços pago por Gilberto tenha sido o excessivo formalismo dos seus poucos conceitos mais abrangentes como, especialmente, o de patriarcalismo, alfa e ômega da formação social brasileira na sua visão. O nível de abstração da noção de patriarcalismo é tão alto, e se refere a tantas situações concretas aparentemente tão diversas, que quase poderíamos dizer dele o que Max Weber diz a respeito do conceito de poder: de tão ubíquo ele se torna sociologicamente amorfo, ou seja, ele perde parte da força diferenciadora, atributo dos conceitos claros e de menor alcance. Esse foi, inclusive, o ponto principal da discórdia com Sérgio Buarque, seu crítico mais ilustre.
Preço talvez ainda maior tenha sido seu "organicismo sociológico", que faz com que sua obsessão com o tema da ambigüidade cultural assuma uma forma extremamente peculiar e pessoal. Por ambigüidade aqui se compreende todas as matizes da dualidade: a indecisão, a harmonia, o equilíbrio, e também a desarmonia e o conflito, a flexibilidade e o antagonismo etc. O que parece conferir o caráter conservador e saudosista da reflexão gilbertiana é a noção de que no Brasil colonial da casa-grande e da senzala esses antagonismos e essa ambigüidade eram tendencialmente harmônicos e complementares de algum modo. Em Sobrados e mocambos, como resultado do processo de proletarização e favelização produzidos pela incipiente urbanização e industrialização, é que o desequilíbrio passa a ser a regra.
No entanto, o próprio uso de termos como equilíbrio ou desequilíbrio traem a relação prioritária em referência à uma concepção holista de sociedade na qual a ênfase na complementaridade entre as partes é, tanto normativa quanto empiricamente, a preocupação principal. Essa limitação é evidente na questão da "democracia racial". Apesar de Gilberto reconhecer a situação de abandono do negro no período pós-abolicionista, abandono da Igreja, do Estado, da indústria nascente, levando à marginalização do negro pobre5, ele se preocupa com quem "esteja procurando introduzir entre nós o mito da negritude, com intenções sectariamente ideológicas".6 A palavra "sectária" é sintomática. Ela acusa o desconforto com a parte que não se inclui no todo, na "hierarquia" que constitui uma espécie de totalidade orgânica. Sua crítica, de forma conseqüente, se dirige às elites, a quem cabe "aprimorar" a relação entre as partes e levá-las a um mínimo de tensão interna. A reflexão gilbertiana se revela presa a uma noção de identidade nacional indivisa, que hipostasia e no limite impede a tematização de interesses divergentes.
Ao mesmo tempo, as formas de luta contra o racismo não podem desconhecer a eficácia do mito da democracia racial. Não apenas a eficácia da mentira perversamente mantida para fins de dominação, que é sem dúvida um de seus aspectos, quer haja ou não consciência de quem o pratica. Penso na eficácia de seu componente ambivalente, que permite pensar a interação e a assimilação cultural como algo desejável e como um valor, o que está longe de ser evidente no mundo em que vivemos, e não apenas nos países ditos pré-modernos e fundamentalistas.
Para Anthony, Marx a estratégia de enfatizar uma origem cultural africana diversa teve menos sucesso no Brasil que nos Estados Unidos porque esse discurso foi "incorporado pelo Estado brasileiro", de resto confirmando sua tendência corporativa e inclusiva (Marx 1997: 261). Novamente, acho que estamos diante de uma evidente subordinação da variável cultural em relação à institucional. É como se a variável cultural não tivesse um peso específico próprio, podendo ser instrumentalizada para a luta política com maior ou menor sucesso. Também esse ponto pode ser percebido de outro modo. O sucesso do movimento negro americano em usar o tema da origem africana distinta, muito provavelmente tem relação com o fato de que os negros americanos não eram percebidos como construtores da "comunidade ancestral americana" em igualdade de direitos com os brancos. Nesse caso, a origem africana comum forjava de forma efetiva um contradiscurso e uma solidariedade a partir de um destino compartilhado. Essa solidariedade só me parece possível pelo fato, de resto amplamente confirmado pelo rico material histórico trazido à baila por Marx em seu livro, de que os brancos efetivamente não viam no negro nenhuma contribuição cultural ou moral efetiva para a construção da nação americana.
O caso brasileiro é bastante diverso. Jamais houve um projeto consciente de construção da sociedade e da nação no sentido americano, visto desde o começo como uma experiência única e exemplar, sob a forma de um contrato sagrado entre os pioneiros e seu Deus, a semelhança do contrato dos judeus com Jeová, de resto explicando a notável semelhança ideológica entre judeus e americanos. Esse contrato entre puritanos, cuja importância para a vida civil e política americana moderna não pode ser esquecido, já existia antes da chegada dos negros, os quais não eram vistos como parte do contrato (Bellah, 1990 e 1991). Apenas na década de 1960, com John Kennedy, e especialmente Lyndon Jonhson, temos a explícita integração dos negros à comunidade política americana, a partir precisamente de uma reinterpretação do contrato original de modo a incluí-los (Munch 1993: 277).
No Brasil, ao contrário, com a abertura ao mundo civilizado no século XIX, os ansiados valores da modernidade européia e norte-americana eram estranhos tanto a negros quanto a brancos ou "morenos". Assim, um aspecto não levado em consideração por Marx é o fato de que um aspecto central do racismo é o "eurocentrismo" (Fraser 1997: 22), ou seja, a associação consciente e inconsciente de traços morais privilegiados à "brancura" e de traços desvantajosos a pessoas de cor em geral, negros, morenos, amarelos etc. Em Hollywood, não são apenas os negros que interpretam os papéis de criminosos, violentos, tolos e primitivos, mas também o latino-americano, o chinês, o árabe etc., ou seja, todo aquele não diretamente associado ao núcleo do projeto ocidental, puritano e individualista.
Nesse sentido, um ponto importante nesse tema é a consideração simultânea de dois aspectos constitutivos da modernidade ocidental: por um lado, seu potencial pedagógico, aquilo que Weber chamaria sua validade universal em comparação com outras culturas, de aprendizado moral no sentido do universalismo ético e do ideal da igualdade, e, por outro, seu elemento de dominação arbitrária, magistralmente analisada por Norbert Elias, na qual a "civilização" se revela principalmente como um elemento diferenciador entre classes e nações (Souza 1999). Decisivo no argumento de Elias é que essa necessidade de distinção social não é intrinsecamente "racional", ou seja, baseada em alguma espécie de necessidade social fundamental. Ao contrário, ela muitas vezes é também, em grande medida, pelo menos, arbitrária, estigmatizando alguns comportamentos e favorecendo outros de acordo com as necessidades de legitimação dos estratos sociais superiores. A justificação desses comportamentos como mais racionais, mais saudáveis ou higiênicos é posterior à sua estigmatização.
Nesse sentido, conceitos como razão e racionalidade são, para Elias, expressões coisificadas (racionalizações, no sentido freudiano) de uma certa direção específica da economia instintiva. Desse modo, não existe razão, mas no melhor dos casos, racionalização (Elias 1990: 378), ou seja, certa direção de desenvolvimento originada a partir da concorrência entre grupos sociais, assim como pela concorrência dos indivíduos dentro desses grupos. O resultado reflete, portanto, um contexto contingente de poder relativo específico (Bogner 1989: 21), no qual a "posse" de certas características externas de comportamento se destina à legitimação de situações fáticas de dominação.
Esse último elemento aponta precisamente para o potencial de solidariedade entre dominadores que se reconhecem mutuamente como dividindo um padrão cultural comum. Embora devamos nos precaver contra perspectivas que absolutizem o elemento do poder em detrimento do elemento de aprendizado ético do racionalismo ocidental, um adequado equilíbrio entre essas duas perspectivas se revela muito frutífero.
Desse modo, é fundamental, em uma comparação que leve a sério o elemento cultural, a disparidade entre uma nação fundadora do ocidente, retirando sua auto-estima desse fato, e uma nação com "complexo de inferioridade", como afirma o próprio Marx em outro contexto (Marx 1997: 34). Por conta disso, tudo que iria servir de elemento formador de algum sentimento de "brasilidade" e de especificidade cultural seriam elementos da cultura negra: a música, a dança, o espírito festivo, a forma "dionisíaca" de jogar futebol etc. Nesse contexto, não surpreende que uma origem africana específica seja percebida como patrimônio comum de todos os brasileiros. Um Estado arregimentador como o de Getúlio Vargas pode certamente tentar se aproveitar dessa tradição, mas não pode criá-la. O Estado todo-poderoso do argumento de Marx, uma espécie de Deus ex machina, ocupa o lugar, na verdade, do peso específico da variável cultural.
O fato de grande parte de nossa auto-estima estar ligada ao tema da democracia racial é algo que pode ser aprofundado e aproveitado positivamente, precisamente pela oposição entre a idéia e a realidade, para mudar o contexto de desigualdade racial flagrante. Em pesquisa sobre racismo e preconceito realizada em setembro de 1998 no Distrito Federal, encontramos resultados interessantes para o tema da democracia racial.7
Exceto para o segmento de menor escolaridade, a convivência entre as diferentes raças é percebido como o cimento identitário mais importante.
O aumento da militância negra nas últimas décadas, assim como a crescente importância desse debate na comunidade científica atraíram a atenção do Estado brasileiro. Um debate realizado em 19968 e promovido pelo Departamento de Diretos Humanos do Ministério da Justiça trouxe sugestões interessantes para o tema do combate ao racismo. O tema do seminário nos interessa de perto, uma vez que sua realização visava precisamente a comparação dos casos brasileiro e americano, de modo a especificar as formas mais adequadas de combate ao racismo no Brasil. Especialmente interessantes, para o caso brasileiro, parecem aquelas sugestões que combatem a desigualdade flagrante entre brancos e negros no Brasil a partir de uma referência apenas indireta à questão da cor.
Para George Reid Andrews, por exemplo, o modelo da revolução cubana que eliminou as diferenças raciais em saúde, expectativa de vida, educação e emprego a partir de programas definidos não pelo critério racial, mas pelo de classe, seria uma perspectiva interessante. Em uma sociedade como a brasileira, na qual os mais pobres são negros, qualquer programa dirigido a esses setores teria impacto direto na questão racial (Andrews 1997: 142). Acresce-se a isso a dificuldade prática, em um país com alto grau de miscigenação, de verificar quem seriam os beneficiados de tais programas. Quanto à institucionalização de programas afirmativos, sua posição é mais ambivalente: "Tendo vivido a minha vida inteira em uma sociedade que ainda está sofrendo as conseqüências de ter institucionalizado as divisões raciais, vejo com certo horror o Brasil entrar nesse poço sem fundo, cujos efeitos persistiriam muito depois de terminarem os programas mesmos" (Andrews 1997: 143).
Para ações que atacassem o problema em sua dimensão especificamente racial e cultural, e não apenas em conjunto com o elemento de classe, poderíamos pensar em uma reflexão interessante que Nancy Fraser propõe nesse contexto. Ela distingue analiticamente as ações afirmativas das transformativas (Fraser 1997: 23). As primeiras procuram compensar injustiças sem tocar no pano de fundo cultural que as provoca. As últimas, ao contrário, procuram reestruturar o próprio pano de fundo cultural que produz a injustiça. Essa idéia me parece interessante e aponta para uma solução específica de combate ao racismo em um contexto como o brasileiro.
O racismo brasileiro, por suas peculiaridades culturais, poderia ser combatido com ações visando o segundo caso, e não o primeiro. Para Roberto DaMatta, pensando no mesmo sentido, campanhas utilizando sobretudo a televisão, nas quais os brasileiros se vissem confrontados com seus mecanismos implícitos de exclusão racial, seriam especialmente indicadas (DaMatta 1997: 74). A discussão aberta do tema nas escolas e na mídia poderia certamente ajudar a transformar um belo mito em realidade. O melhor exemplo nesse ponto talvez seja a Alemanha Federal, a qual, a partir do enfrentamento corajoso e público de seu passado recente, logrou formar uma das juventudes mais democráticas e liberais da Europa atual.
Desse modo, estaríamos lidando com uma dimensão não instrumental da cultura. Essa seria uma forma de aproveitar o potencial cultural e simbólico do mito da "democracia racial", levando-o às suas últimas conseqüências. Aqui, é necessário chamar a atenção para o fato de que os mitos não são simples mentiras. Mitos não são falsos ou verdadeiros do mesmo modo que teorias científicas. Mitos não pretendem descrever realidades. Uma vez que o mito serve primariamente para conferir um sentido a essa realidade (Bellah, 1991), ele visa, antes de mais nada, à produção de solidariedade social e à viabilização de projetos coletivos. O fato de grande parte de nossa auto-estima estar ligada ao projeto da miscigenação racial e da integração cultural é um fato sociologicamente relevante e extremamente importante para que políticas públicas possam eficazmente mudar a realidade cotidiana das pessoas que teriam mais a ganhar com isso.
Notas
1. Os dois casos são argumentados convincentemente no decorrer do livro como casos específicos de uma tendência mais geral da formação do Estado nacional moderno: a exclusão de etnias, grupos ou classes como forma de consolidar solidariedades internas. Além do caso óbvio da Alemanha nazista, Marx cita também a Espanha, unificada pela exclusão dos judeus, e a Rússia, pela exclusão de uma classe capiltalista incipiente.
2. Para Freud, tanto o sadismo quanto o masoquismo são componentes de toda relação sexual "normal", desde que permaneçam como componentes subsidiários. É apenas quando o inflingir ou receber a dor se transformam em componente principal, ou seja, quando passam a ser o objetivo mesmo da relação, que temos o papel determinante do componente patológico.
3. Essa é a opinião também de Ricardo Benzaquen (1993: 98). Na verdade, em Casa-grande & senzala a ênfase é efetivamente na igualdade de condições nos dois países. Recentemente, no entanto, a revista Veja publicou um trecho inédito de uma conferência proferida por Freyre na Universidade de Stanford em 1931 – portanto dois anos antes do lançamento de Casa-grande & senzala – na qual Freyre, sem se referir explicitamente ao caso americano, supõe uma "imensa distância" entre a escravidão nos domínios portugueses e aquela praticada por outros europeus em suas colônias (Veja, 15 de setembro de 1999, p. 71).
4. Devo o melhor esclarecimento desse ponto e de suas consequências a comentários de Sérgio Costa a uma versão anterior deste texto.
5. Entrevista concedida a Lêda Rivas em 15 de março de 1980.
6. Entrevista concedida a Renato Carneiro Campos em Recife, 1970.
7. Pesquisa realizada em todo o Distrito federal e coordenada por mim e pelo professor Franz Hoellinger da Universidade de Graz, Áustria.
8. As contribuições ao Seminário foram reunidas em Souza (1997).
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